31/05/2025 as 13:30 12492h
NEGÓCIOS QUE CONTAM HISTÓRIASNegócios liderados por pessoas negras combinam inovação e ancestralidade
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Por Fernanda Spínola
O afroempreendedorismo no Brasil movimenta quase R$ 2 trilhões por ano. É o que aponta o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Para muitas pessoas negras, empreender além de ser uma fonte de renda, também pode ser uma forma de resgatar suas raízes. Apesar dos desafios como o ao crédito, a informalidade e a invisibilidade no mercado, o empreendedorismo negro voltado à valorização da cultura preta tem fortalecido redes, identidades e negócios.
Para a especialista em História e Cultura Afro - Brasileira, Stael Moura, o afroempreendedorismo não é apenas uma atividade econômica. Ele carrega saberes, práticas e estéticas ancestrais. “Afroempreender é visibilisar às contribuições históricas e culturais da população negra, construindo para autonomia e resistência, representatividade e pertencimento. É orgulho identitário”, disse Stael Moura.
A pesquisadora destaca que muitos empreendedores negros têm trajetórias marcadas pela negação histórica de direitos básicos, como o o à educação de qualidade e a redes de apoio. Ela acrescenta que algumas iniciativas de formação e e 'muitas vezes não são pensadas com recorte racial'.
“O afroempreendedorismo surge como uma resposta potente ao racismo estrutural e à exclusão histórica da população negra dos espaços de poder e geração de riqueza no Brasil. Mais do que empreender por necessidade, afroempreender é resgatar saberes ancestrais, afirmar identidades, movimentar a economia nos territórios e promover reparação histórica”, afirma Moura.
Segundo o estudo “Afroempreendedorismo Brasil”, realizado pela RD Station, Inventivos e o Movimento Black Money, os principais segmentos desse ecossistema incluem saúde e estética (14,3%), e-commerce e varejo (ambos com 10,4%), marketing e publicidade (8,4%) e consultoria e treinamentos (8,3%). O levantamento também destaca ensino e educação (7,3%), alimentação (7%), mídia e comunicação (6,7%), áreas financeira e jurídica (5,6%) e eventos (5,4%).
Empreender com identidade
A ancestralidade e as referências culturais afro-brasileiras aparecem de forma central e poderosa nos empreendimentos liderados por pessoas negras. É o caso do arquiteto Eddy Matheus, criador da Epic Arts Atelier (@epic_arts_atelier), que há mais de cinco anos une sustentabilidade e herança ancestral em cada peça que produz.
“Eu acho que é importante a gente trazer essa representabilidade dentro das nossas peças e do que a gente trabalha, independente que seja algo visual, algo funcional ou não, algo que às vezes só seja expositório, pra gente só expor ou contemplar. Tem pessoas que compram as peças e não usam. São só para colocar em casa e dizer ‘eu tenho isso porque isso representou’. Nos meus pentes, cada pente é um pente único. Então, eu não faço outro pente igual, são sempre diferentes, porque eu acho que cada pessoa tem uma identidade”, explica Matheus.
Para ele, o pente garfo da Epic, por exemplo, não é apenas um ório de cabelo, mas uma expressão artística que conta uma história de criatividade, cultura e compromisso com a sustentabilidade. É uma celebração das raízes afro, reinterpretadas através de uma lente futurista, tornando cada pente uma declaração de identidade e estilo.
O arquiteto utiliza o termo “afrografismo”, uma técnica que homenageia as raízes e a riqueza da cultura afro-brasileira, para definir essa abordagem estética e simbólica. A partir desses elementos, Matheus reinterpreta símbolos ancestrais e une ado, presente e futuro em suas peças.
“A criação de máscaras africanas com afro grafismo autoral é uma celebração da minha ancestralidade. Ao incorporar elementos característicos de tribos africanas, não apenas homenageio essas tradições, mas também as reinterpreto. Essa abordagem me permite estabelecer um elo entre o ado e o presente, trazendo à tona a rica diversidade estética e simbólica das culturas africanas”, detalha o empreendedor.
Eddy Matheus ressalta que ser um afroempreendedor envolve múltiplas camadas, tanto pela vivência como empreendedor quanto pela trajetória enquanto pessoa negra. “O ser negro não é fácil em meio ao comercio. Você tem que saber o jogo de cintura de cada lugar. Você tem que saber quem você vai atingir, que é o mais importante. E tem que saber também como dosar o preço das suas peças em relação ao público que você quer atingir. Afinal, o nosso público não tem toda aquela aquisição porque o nosso público é o mais popular. Então tem que ser ível para todos. Nossos empreendimentos não atingem só pessoas negras. Eles atingem todas as pessoas, independente da cor de pele”, disse.
Para Larissa Vieira, que começou a empreender aos 14 anos, encontrou no empreendedorismo uma forma de expressar sua identidade e superar a falta de o a produtos que representassem sua cultura. Hoje, aos 30, ela comanda a marca Matagal (@matagalartesanato), em que a trajetória começou com roupas feitas em parceria com a mãe costureira, inspiradas nas referências do reggae sergipano que marcaram sua adolescência.
“Eu comecei no afroemprendedorismo muito cedo, a partir do reggae, que eu ouvia e consumia muito a cultura do reggae. Eu não tinha condições de comprar as roupas que na época vendia aqui na cidade. Era cara a roupa de reggae. E aí como minha mãe é costureira, eu comecei. Comprava sobra de tecido, de malharia, essas coisas assim. E comecei a fazer desenhos em cima. Alguns eram das capas de cd,outros que eu gostava e depois fui fazendo”, conta Vieira.
A vontade de se expressar visualmente levou Larissa às ruas e escolas, onde começou a vender quadros, prints (reproduções de obras originais) e outros trabalhos autorais. “Eu não tinha o à tecnologia, então desenhava à mão, pintava, fotografava e imprimia os trabalhos para vender”, relembra. Com o tempo, reuniu recursos e investiu na criação de sua própria marca, que hoje carrega uma identidade visual, com peças artesanais que unem bordado, estamparia e moda sustentável.
Além da Matagal, Larissa também lidera o projeto Mundo Negro (@mund0negr0), que há sete anos funciona como vitrine para suas criações. Formada em Artes Visuais, ela busca nas referências africanas, como máscaras, esculturas e padrões geométricos, a base estética e conceitual das suas produções.
Apesar do crescimento do afroempreendedorismo e da valorização de produtos com identidade cultural, Larissa afirma que ainda há pouca estrutura e investimento direcionado a empreendedores negros. “As feiras de rua se tornam nossas galerias, nossos espaços de visibilidade. Muitos artistas periféricos encontram ali o único meio de circular e vender suas criações”, ressaltou.
A presença da ancestralidade
Mariana Onira, criadora da Ya Onira Herbalística (@yaoniraherbalistica), encontrou no empreendedorismo a chance de unir tradição familiar, saberes ancestrais e resistência cultural. Antropóloga e praticante do candomblé, ela começou seu negócio em Salvador durante a pandemia, quando sua bolsa de estudos estava prestes a acabar. Inspirada pela avó lavadeira, que fazia sabão artesanal e utilizava ervas medicinais, a estudante decidiu transformar esses conhecimentos em cosméticos naturais.
Com uma linha que inclui shampoos, condicionadores e sabonetes, Mariana vê seu trabalho como uma forma de manter viva a ligação com a natureza, uma conexão que, segundo ela, está se perdendo. “A gente está cada vez mais distante da natureza ível. Essas plantas que muitos chamam de mato, na verdade, são remédios à nossa disposição. É uma medicina ancestral, parte do nosso modo de vida no candomblé”, afirma.
Ela também destaca o valor simbólico de cada ingrediente. As folhas usadas nos produtos carregam histórias (itãs), e cada uma deve ser colhida com permissão do orixá Ossãe, guardião das ervas no candomblé. “Meus produtos contam histórias. Eles não são só cosméticos, são memórias vivas.”
Para Mariana, empreender também é um ato de resistência. Ela conta que os afroempreendedores am por um cenário com pouco apoio financeiro e concorrência desleal com grandes marcas. Diante disso, aposta na força das feiras populares como espaços potentes de trocas culturais. “As feiras são lugares de sociabilidade e identidade. Ao contrário dos shoppings, que são não-lugares, as feiras são vivas.”
A antropóloga ainda pontua que empreender é continuar a história da avó e de muitas outras mulheres pretas que cuidaram de seus lares com o que a natureza oferecia.
Crédito negado
O o ao crédito continua sendo uma das principais barreiras para quem decide empreender. Seja para iniciar um negócio ou manter as contas em dia, especialmente após os impactos da pandemia, empreendedores, especialmente os que se declaram negros, enfrentam obstáculos que vão além dos números, como burocracias excessivas, altas taxas de juros e até discriminação.
Apesar de representarem uma grande parte do empreendedorismo no Brasil, muitos afroempreendedores ainda não conseguem ar linhas de crédito em bancos e instituições financeiras tradicionais. Uma pesquisa do Instituto Feira Preta, em parceria com Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Caribe e consultoria Plano CDE, analisou o perfil e os desafios de três mil afroempreendedores na Argentina, Brasil, Colômbia, Peru e Panamá. O levantamento revela que 44% dos empreendedores negros brasileiros já tiveram pedidos de crédito negados, índice que cai para 35% entre pardos e 29% entre brancos.
Mesmo com um índice de formalização de 71%, os negócios liderados por pessoas pretas ainda enfrentam desafios como burocracia, taxas de juros elevadas e barreiras que podem estar relacionadas a aspectos estruturais e sociais, incluindo a questão racial. Ainda de acordo com a pesquisa do Instituto Feira Preta, mais da metade dos entrevistados afirmou já ter vivido situações de preconceito em suas atividades empreendedoras, o que compromete o crescimento e a sustentabilidade dos empreendimentos.
A pesquisadora Stael Moura aponta que muitas marcas negras enfrentam o boicote velado de consumidores, desconfiança ou exigência de comprovação de qualidade superior. “É uma luta constante contra o racismo, o que gera cansaço psicológico, insegurança e pressão”, acrescentou a especialista.
Essa situação contribui para um ciclo de instabilidade financeira, já que muitos afroempreendedores recorrem a empréstimos informais, que são limitados e nem sempre suficientes para o crescimento planejado dos negócios. Sem garantias, histórico bancário ou formalização, muitos precisam buscar alternativas para manter suas atividades.
“Sabemos que há burocracias mais rígidas e critérios excludentes que penalizam muitos afroempreendedores e afroempreendedoras, que repetidamente não têm garantias, não tem históricos bancários ou até mesmo CNPJ formalizados”, finaliza Moura.
O levantamento também aponta que 31% dos afroempreendedores brasileiros usam o limite do cartão de crédito para investir no próprio negócio. Além disso, 48,6% dos negócios liderados por pessoas pretas ainda não apresentam faturamento formalizado, o que evidencia a presença significativa da economia informal e as dificuldades para garantir a subsistência por meio dessas atividades.
Fotos: Fernanda Spínola